sexta-feira, 19 de março de 2010

LINDO TEXTO DA CAROLINE LIPCA

“A mata estava escura/ um anjo iluminou/ no centro da mata virgem/ foi
S. Oxossi quem chegou”
Qualquer um que entre, após a descida de S. Tupinambá, pode vir a
pensar em histeria coletiva. O som do atabaque é alto, tanto que abafa
as vozes e a conversa dos mais distraídos – além da explicação para os
mais curiosos. Pois descem, um por um, rodando, bufando, aos brados,
prontos para a caça. Não são arquétipos de anjos celestes, com
repertórios de harpas e flores. Aqui não há espaço para ingenuidades.
São mais, são sábios, matreiros, fortes e guerreiros. São caboclos de
Oxóssi que chegam com suas flechas, bodoques, apitos e cocares, trazem
as ervas, a água e a luz de Aruanda.
Sento-me junto à cabocla que repete para que eu bem entenda: um é
complemento do outro. Explica-me a unidade do pequeno conjunto de
elementos em sua tábua para que eu entenda o todo. Pois a luz é que
faz crescerem as plantas, que vêm das sementes e dão frutos e folhas.
E as folhas pertencem ao céu. E confirmo que o céu é dos caboclos.
Venho para ganhar um abraço, um colo. E posso falar da minha
abstinência, que é de luz. Pois já me havia dito meu pai Xangô que é
isso que vamos todos buscar lá – embora algumas vezes não saibamos.
Concordo, de pálpebras cerradas, relembrando. E afirmo que quem não
tem olhos de ver, ainda assim tem o corpo para sentir. É só tentar.
Pois no frescor da mata e no alívio das dores é onde vibra Oxossi. E o
tapinha no rosto, seguido do sorriso largo, isenta qualquer desordem
em minha mente. Saravá meu pai Tupinambá! Já me encontro salva dos
meus demônios. Mas ainda não vou. Minha saudade é essa, mas também
outra, e espero mais um tanto.
As despedidas são feitas e vão-se todos, embora pra cidade da Jurema,
“vão ser coroados na cidade da Jurema/ com a coroa de guerreiro da
cidade da Jurema”.
(Então vem escorrer sobre todos o rio dourado, a vibração pacificadora
de Oxum. Vem trazer amor, união, placidez e bem-estar. Um alento para
as vistas e a alma dos aflitos. Chega girando lenta, delicada, para
embalar os filhos que vem buscar ajuda.)
Diferente de Oxóssi, em seu etéreo verde de largo sorriso, Ogum traz o
peso do metal e os olhos de fogo. É ali, no centro do terreiro, quando
os atabaques esquentam, que desce S. Sete Ondas. “Que bela surpresa/
vem de Aruanda nos abençoar.” E é só o começo. Vêm ainda muitos
outros, como soldados, em ordem, em peso e tamanho, em gana e
seriedade. São astutos, diretos, cortantes e certeiros. Por trás de
cara fisionomia fechada, um caboclo faz valer suas armas. Ogum é
trabalho, dedicação, e é amor também.
Não perco minha deixa e chego ali, na fila de espera, para ver se
ganho o abraço que fui buscar. Ele não tarda, nem falha. “Venha cá,
Caroline.” E o enlaço, numa das poucas formas que os limites desse meu
corpo permitem acarinhar um amigo querido, um protetor leal – a quem
eu tanto devo. “Eu sei tudo que acontece com você.” E não duvido. Quem
duvidaria? Afinal, depois de trazer alguém à tona, se pode ainda
ensinar a respirar. E ele acompanha todo meu inspirar e expirar. Sem
nenhuma condenação. As broncas vêm, é certo, mas com carinho, como as
de um pai cauteloso.
Oferece-me, ali ao lado, um amigo novo para conversar. Temos quase a
mesma idade. Ele sete e eu doze, no máximo. Seu pai fica no meio, pois
é hora de tratar das chagas.
São homens e mulheres, ali sentados. Todos com suas dores e seus
problemas. Os semblantes são sérios e entristecidos. O colo de que
precisam ainda é maior do que aquele que eu buscava. Mas é menor do
que Ogum vem oferecer. “Gira, gira, gira dos caboclos.” E se houvesse
imagem para definir o trabalho, seria algo como uma grande enfermaria.
Saem dos corpos afiadas farpas de desgosto, o denso pus da solidão,
são abertas e vazadas todas as feridas de tristeza. E para a limpeza
daquilo que sobra: Caboclo da Pantera. Chega para recolher e levar
aquela toda a sujeira, vem fazer a assepsia do espaço, para que cada
um possa ir embora limpo.
(Mas ninguém de lá sai antes de receber o amor da grande mãe. Vem
Iemanjá, a espalhar toda sua luz azul. Chegam sereias de todos os
lados a sussurrar e murmurar votos de amor, alegria e felicidade para
os filhos. Trazem nas mãos a água salgada, que limpa e purifica toda a
carne aberta, todo o espírito ferido.)
Meu amigo, ali sentado, canta todos os pontos e explica, baixinho,
como gosta de Iemanjá e Oxum. Isso talvez porque seja ele também um
gigante. Espírito não marca idade e não tem só o tamanho do corpo. É
algo como a brabeza das pessoas pequenas – que geralmente é enorme.
Um tempo para respirar, parecia. Um ponto de Ogum ao fundo. Mas quem
respira quando caboclo quer trabalhar? Ponto de Ogum ao fundo, pelos
lados, por cima da cabeça, nas paredes. Eis que se apresenta o
primeiro guerreiro. Com a fronte cerrada, girando com velocidade, ele
chega, agitando a médium compassadamente. A energia se espalha. (Essa
é sua força, filha.) Não precisa nada mais para que venham ainda
outros. Ritmados. Brandindo suas armas, voltando ao combate. Ogunhê! A
energia cresce, cresce e sobe. Em volta da corrente, uma alta
barreira, como uma muralha. Como disse, Ogum é amor e vem cuidar dos
seus filhos, proteger os filhos de sua casa.
Mal desincorpora a ogan e é posta ali, com atabaque e tudo, no centro
da pequena sala. Uma de cada vez, as palmas tocam o couro. Veloz e
cada vez mais. Como os músculos que sofrem, o coração pulsa. “Ogan
toca pra Ogum” – que Ogum vem. Três, ali no centro, a curimbar.
Nenhuma palavra, nenhum sorriso, mas a dança revela. Cada pé que bate
no chão como o passo do sangue nas veias. O cuidado cadenciado dos
espíritos em cada pulsar de energia ali, em volta de quem precisa.
Difícil não se emocionar com tanta delicadeza. Ainda mais pra mim,
essa eterna manteiga derretida. Mas então a hora tarda. Depois do Pai
Nosso, um abraço nos amigos dedicados, que estão ali entregues, a
serem os emissários pelos quais podemos conversar e abraçar nossos
outros tantos amigos e protetores espirituais.
“A Umbanda é paz e amor/ um mundo cheio de luz/ é força que nos dá
vida/ e a grandeza nos conduz”.
E é por tudo isso e muito mais que eu digo “Salve!” à corrente de
ferro e de aço do Caboclo Akuan – que me deu de presente esse vício
bom de macumba, de aprender com os espíritos e esse amor ao saravá!
Axé! – como diria meu pai de santo.
Esse texto foi escrito após a ultima gira de 4a. feira do TPM.,FMG

23 comentários:

  1. Chorei ao ler este texto da Lipca. São os olhos de uma filha de Yansã que buscam todos os detalhes de uma gira, mas que antes foram doutrinados pelo amor, respeito e segurança que passam as palavras do Pai Fernando. Certa vez ouvi um pai de santo falando que as filhas de Yansã são as mais difíceis. Realmente são. Porque pra elas, e bem sei do que digo, é necessário que se dê muita informação consistente e equilibrada. E pai Fernando ,sempre falo, não semeia na pedra.
    Os ventos de Yansã que a Lipca carrega dentro da alma certamente levarão os frutos das árvores do conhecimento que painho semeou pra longe.Por outro lado vejo este texto também como uma oportunidade atual de muitos reverem sua posição no terreiro. Há tanto o que se observar numa gira! Pra que ficar pensando no que os outros pensam ou fazem? Há ali um verdadeiro milagre acontecendo! Então a filha de Yansã vem trazer pro caminho de Ogum, com este texto, seus filhos perdidos em guerras vãs.
    Como mãe que sou sei da felicidade de Pai Fernando em postar algo tão belo. É uma filha reluzindo no conhecimento. Isto me emociona.
    Lipca eu estou muito ORGULHOSA de você! Por outro lado gostaria também de deixar um aviso aqui pro Pai Léo: um filho de umbanda só pode ver tanta luz numa gira se o pai de santo exerce sua função com a amor e caridade. Então parabéns pela sua atuação! Saravá a todos!

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  2. Lindo, lindo, lindo! Não precisa dizer mais nada! Pura emoção traduzida em palavras!!
    Carol, sou sua fã!
    bjs
    Fabi

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  3. Lindo texto ...que descrição maravilhosa do interior de uma gira, emocionante, simples e completo....

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  4. E M O C I O N A N T E.
    Náo tenho palavras para descrever a felicidade de ler este texto, que táo facil me encheu os olhos de lagrimas a cada linha.
    Obrigado Caroline, por este presente.
    muita luz e axé.
    kiko.

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  5. Caroline

    Parabens ! Vc soube resgatar em palavras a essência da Umbanda . Deixou eu e muito emocionados !
    Saravá a Umbanda

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  6. Carol querida
    Uma das coisas mais difíceis de se conseguir é transmitir o conteúdo imaterial de uma gira. A Umbanda, em sua complexidade, parece tornar impossível a compreensão de tudo que se experimenta em uma jornada de trabalho. Detalhes são esquecidos, não se consegue ver o todo: apenas fragmentos de algo que nos transforma a cada nova gira.
    Você conseguiu uma proeza, falar de si e do todo, de uma maneira inevitavelmente apaixonada, como acontece com aqueles que estreitam os laços com a espiritualidade. Não posso deixar de acrescentar um comentário: fico muito feliz por ter tido a oportunidade de contar com você como cambone. Na Umbanda, as despedidas anunciam o reencontro e o papel que você tem a desempenhar hoje, certamente, é mais abrangente no que se refere à experiência de um trabalho mediúnico. Por favor, mantenha este hábito da escrita, assim mesmo: no calor do afeto e do carinho espiritual.
    Cris Mendes

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  7. Pai Fernando,

    É a esse tipo de sentimento e fé a que me referia no outro post. Em testemunhos e sensações imensos como este é que está o grandeza da nossa fé, Não na frieza e na insensibilidade dos números.

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  8. Foi, realmente, uma gira singular, dessas que acontecem só de vez em quando. O ritual estava sem vibração, os médiuns, por alguma razão estavam dispersos e apáticos. O canto estava sem energia, o atabaque descompassou várias vezes. A gira de Oxosse, ainda que com bons trabalhos, foi muito menos intensa do que já estamos acostumados. Oxum sempre é bom, mas nessa noite não foi vibrante como outras. No começo da segunda parte a energia estava tão parca que eu tive que deixar de receber Sr Sete Ondas para ajudar a gira a "esquentar" e os Caboclos poderem chegar. E foi assim, tudo meio na unha até pouco antes do final. Foi quando, sem aviso prévio, sem que cantássemos o ponto específico, a falange de Naruê começou a baixar. Criou-se, assim de repente, uma energia tão forte que arrebatou quase todos os médiuns em questão de um ou dois minutos. E ela crescia e crescia sem parar. Achei que as telhas do Terreirinho fossem sair voando... Uma maravilha, marcante e inesquecível!
    Ao final pedi a minha amiga Carol, a Pirulipca como eu a chamo, que estava lá desde o início, que escrevesse a crônica da noite. Sei de seu olhar sensível e de seu talento literário, mas nem de longe esperava algo tão bonito e inspirado. Uma pérola! Já a agradeci mais de uma vez e o faço de novo. Obrigado mana, obrigado mais uma vez. E Saravá!
    Leo.


    igualmente amena perto de outras vezes. O começo da gira de Ogum também foi Mas quando Ogum desceu

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  9. Saravá, pude presenciar esse belo trabalho!
    Jeverson

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  10. Carol:
    Ter sido sua cambone,com certeza acrescentou muito em minha caminhada na Umbanda,e tb me despertou "uma suspeita",rsrs,que agora ao ler esse texto tão bonito,tenho certeza que ela é verdadeira:
    VC CAROL,É UM ESPÍRITO ENVELHECIDO,NO CORPO DE UMA JOVEM
    Obrigada pelo carinho e pela nossa curta covivência,Cleópatra.

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  11. Emoção do começo ao fim.
    Obrigada Carol por compartilhar o seu sentimento conosco.
    Adoro a maneira que você escreve.É puro, sincero e com amor.É umbanda,né?

    bjsbjsbjs

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  12. Pai Fernando,

    parabéns pelos seus filhos.

    bjsbbjsbjs

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  13. Pai Béco de Oxóssi20 de março de 2010 às 13:04

    Guria!
    Você quer matar o velho né?
    Não! Se consegui sobreviver a leitura desta maravilha de texto, não será de forte emoção que vou desencarnar. Graças à Deus este blog é acessado por centenas de pessoas que terão a oportunidade de também sentir a emoção que sentí. Belo depoimento de fé. Bela visão do potencial energético e da grandeza da nossa Umbanda e de seus guias.Que se calem os outros. Nada mais precisa ser dito. Parabéns e muito axé. Pai Béco de Oxóssi.

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  14. tive que escrever pq me emocionei. e queria agradecer a todo mundo esse olhar carinhoso feito sobre meu txt. escrevi com amor mesmo e fico feliz que tenham se apropriado, que tenham sentido como eu senti. isso é um grande presente pra mim.
    vou aproveitar e agradecer aos meus pais de santo, aos dirigentes da casa, aos amigos de corrente e principalmente aos espíritos. sou muito feliz pelo amor e o aprendizado que todo dia recebo de vcs todos.
    ao S. Akuan e ao Pai Maneco minha grande devoção, gratidão e amor, por terem me aceitado e recebido nessa casa, trazendo de volta a minha fé e me dando novos grandes amigos.

    saravá Umbanda!
    saravá a nossa banda!

    bjo!


    PS: muitos obrigadas para a Tati e o Léo, que me engambelaram e me deram de presente essa oportunidade de ler tanta coisa bonita. ;)

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  15. Desirée Bianeck - Curitiba - PR21 de março de 2010 às 23:31

    Lindoooooo!

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  16. "Amor é o único caminho que temos para trilhar, pois ao longo dessa estrada os bons sentimentos e desejos vão nos encontrando."

    Comecei a ler o texto porque os amigos falaram: "já leu o texto da Lipca?". Passei duas semanas sem acessar internet. Corri para o computador hoje mesmo. E me emocionei.

    Este é o exato sentimento, passado às palavras, de quem vive a Umbanda intensamente como nós vivemos. Para aqueles que não conhecem a Umbanda - mas a Umbanda Pés no Chão - taí o momento de conhecer e tentar sentir as maravilhas dessa nossa religião que, tenhamos certeza, transcende "religião".

    Umbanda é mais que sentimento. Umbanda é natureza. Umbanda é gente; somos nós. Umbanda é o nosso planeta!

    Nós, encarnados, junto com os espíritos e guias, habitamos este planetinha azul e verde e precisamos uns dos outros para transformarmos, a cada dia, nosso amanhã. Entrar em sintonia e êxtase com a Umbanda, numa gira dessas que a Carol descreveu maravilhosamente bem, é entrar em sintonia com nós mesmos, com as matas, os mares, os rios, os minerais, os animais.

    Carol, muitíssimo obrigado por me fazer sentir um ser humano melhor e mais feliz! Muitíssimo obrigado por contribuir pela transformação da Umbanda! Muitíssimo obrigado por me mostrar como é nossa Umbanda e nossa corrente de ferro e aço!

    Um beijo grande com carinho e amor,

    Rodrigo Fornos - Curitiba/PR

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  17. Lindo texto, emocionante!

    Saravá!

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  18. Atitude e fé!
    De quem faz o que sabe
    De quem sabe o que faz
    As palavras ganham sentido
    pq precedem a ação
    e pq sao verdadeiras
    A palavra-ação não se perde no vento
    nem se afoga na soberba
    Parabéns!
    abraço
    Sidney

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  19. Nossa Umbanda é isso aí!
    Paz, amor, sabedoria e fé!
    Axé!!!

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  20. Essa é a minha Maninha!!

    Talento e sensibilidade refinadíssimas!

    Parabéns!

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  21. Carol, vou repetir as palavras da Cris. Mantenha este habito de escrever pois vc, como uma jornalista, poderia relatar tantas coisas bonitas que só nos conhecemos. Relatar para registrar, documentar, divulgar, revelar, reproduzir, e tantos outros compromissos que o texto podem trazer além do sentir.
    Vamos fazer uma revista?hahahah
    beijos Carol e obrigada
    Lucilia

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  22. ahhh caro... que lindo!
    que sua fé e alegria sejam um hábito, e q seu hábito seja a alegria e a fé!

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